RAMOZINHO DO AMOR
Ramozinho do amor: o banguê na rua e no rio
Por:
Arodinei Gaia*
É dia 6 de janeiro. A maré anuncia a chegada dos foliões
de reis. A alegria, a folia, os versos satíricos e o ritmo inconfundível, desce
o rio, os músicos encostam na ponte, sobem a escada e pedem permissão de
entrada, por meio do canto em homenagem aos reis que foram adorar o menino recém-nascido.
Os rios da Amazônia, as ruas dos vilarejos e as estradas
das colônias são presenteados no final de ano e no dia de reis com inúmeros
grupos chamados carinhosamente de “Tirador de Reis” e Tirador de ano”. São os grupos
formados pelo caboclo interiorano que trazem entranhados em sua epiderme o dom de
produzir sons, cantarolar e extrair musicalidade de instrumentos “exóticos”
produzidos pelas suas próprias mãos. Com a mesma habilidade criam versos que se
metamorfoseiam em lindas músicas, que nos fazem lembrar de tempos idos da
nostálgica vida simples do interior. Essas mãos são as mesmas mãos calejadas
pela labuta diária do homem do campo, do ribeirinho, trabalhadores dos rios e
das florestas que tornam-se verdadeiros Mestres da Cultura.
Em Cametá entre vários grupos o Ramozinho do Amor é mais um que teima ou teimava em mostrar a arte do artista popular cametaense. São anos de intenso trabalho na música e de amor pela cultura cametauara.
Em
um bate papo num final de tarde com o Mestre Nicolino na companhia do poeta
Francisco Mendes, podemos degustar um pouco desse saudosismo. Foi possível ver
na memória lúcida do mestre as lembranças, ainda vivas, daquele tempo.
O grupo foi fundado por volta do ano de 1974 pelos
mestres Nicolino Coelho Piteira e Darci Viana na cidade de Cametá. Mestre
Nicolino originário do rio Aricurá e o mestre Darci de Pacuí encontraram-se na
cidade num dia de acaso, talvez traçado pelas mãos do destino que quis unir os
dois artistas por um desejo comum: formar um grupo de banguê.
Darci passava todo dia em uma ponte, na frente da casa de
Nicolino e via o banjo na parede. Certa vez parou e resolveu desafiar se o dono
da casa tocava mesmo aquele peculiar instrumento. Nicolino, prontamente, tirou
o banjo da parede e tocou “uma formada” de banguê que impressionou o
desafiante. Mal sabia Nicolino que na frente dele estava também um grande
mestre de banguê. Mestre Darci Viana, imediatamente, fez o convite para
formarem um grupo, e assim surgiu um dos maiores grupos de banguê do município
de Cametá.
Nicolino tocava banjo e Darci zabumba, seu pai violão e seu irmão Genito Viana pandeiro, os quatro se juntaram com o conhecido Birimbote tocando bongô e Santana Teles o reco-reco. Estava formado o grupo a qual deram o nome de Ramozinho do Amor, título que evidencia a essência do grupo que nas suas letras o amor sempre esteve presente.
O nome do grupo também veio no acaso e de forma curiosa. Surgiu quando os músicos enfeitavam seus chapéus para as tocadas de fim e começo de ano e de repente lembraram que eles ainda não tinham um nome. Naquele momento, um dos tocadores colocava um ramo com flor no chapéu, foi ai que Nicolino teve a ideia. Por que não ramozinho do amor? e assim ficou.
No entanto, a história do Ramozinho do Amor vem de mais
longe, pois o Mestre Nicolino já havia tido um outro grupo no rio Aricurá,
interior de Cametá, quando ainda residia na sua terra, era o Ferro Quente.
Este fora fundado por volta do ano de 1965 e acabou quando houve a mudança do
mestre para a cidade de Cametá. O Ferro Quente tinha uma formação composta
pelos seguintes músicos: Nilson Machado no bumbo, Juvico Viana no violão,
Manoel do Carmo conhecido como Pote Areado no pandeiro e Nicolino no banjo.
A vida do homem Nicolino se confunde com a do mestre de cultura, pois desde de criança ele já convivia com a arte. O seu pai Almerindo Piteira ou Mirico, como era conhecido, foi um grande tocador de banjo e grande repentista com a habilidade de inventar ou criar versos sobre vários temas de improviso, ao som do seu banjo. Mirico morreu quando Nicolino tinha 04 anos de idade, mas a herança musical já havia marcado a vida do jovem mestre.
Arodinei Gaia, mestre Nicolino e Francisco Mendes |
Quis o destino que após a perda do pai, a mãe de Nicolino
fosse desposar um outro homem da música o seu Alfredo Rodrigues Barroso. Foi
pela orientação e insistência do padrasto que Nicolino aprendeu a tocar o banjo
e se dedicasse, inteiramente, ao ritmo do banguê. O próprio banjo fora
fabricado pelas mãos habilidosas de mestre Alfredo e este ensinou as notas e o
ritmo ao jovem músico.
Naquela época, era comum a apresentação dos grupos de
banguê e samba de cacete nas festas do interior e também nos famosos convidados,
onde após a plantação ou colheita dos produtos da agricultura, o dono da terra matava
o porco que era oferecido aos convidados trabalhadores regado a cachaça da boa
e ao som do banguê. Naturalmente, existia uma valorização dos músicos e mestres
que possuíam algum talento e principalmente algum grupo.
Conta-nos o mestre
Nicolino que o grupo era tão bom que certa vez, numa tirada de ano, eles
começaram pelo rio Croatá e foram fazendo as paradas e tocadas até chegar na
localidade de Rio Pacuí. Lá, numa casa, encontraram membros da famosa banda
Caferana, o famoso mestre Bena Viana e mais três músicos. Estes ficaram tão
encantados e impressionados com o som do Ramozinho do Amor que na despedida
pediram para acompanha-los na empreitada. E foi assim que o Ramozinho do Amor
passou o Pacuí inteiro tocando junto com os músicos do conjunto Caferana.
No decorrer dos anos outros músicos se juntaram ao grupo,
principalmente em período de final e inicio de ano. Os dois líderes, mestre
Nicolino e mestre Darci Viana, tinham a missão de completar o grupo em período
de apresentações. Entre esses o cantor cametaense Sérgio Gaia fez parte da
equipe em várias apresentações. Sérgio Gaia, conhecido seresteiro da noite
cametaense é também apaixonado pela música regional, principalmente banguê
e samba de cacete, gosto que herdou do avô, Manoel Evaristo, também
“tirador de rei” do Rio Cuxipiarí, interior cametaense.
Mestre Darci Viana há algum tempo foi tirado do palco
pelo cansaço da idade e por uma enfermidade, deixando o parceiro numa luta
vencida de manter o grupo. Hoje mestre Nicolino, com 79 anos anuncia o
encerramento das atividades do grupo Ramozinho do Amor. É com tristeza que ele
confessa a decepção com a falta de apoio dos órgãos governamentais da cultura e
diz que o encerramento se dar, principalmente pela falta de músicos que queiram
aprender a arte do banguê.
Na verdade, a falta de sucessão, de jovens que queiram
aprender tal arte regional, faz com que essa belíssima cultura artística de
nossa Amazônia paraense faleça diante da “modernidade’ que atrai mais os jovens
do que o seu próprio berço cultural. É a infeliz lógica “do que é bom vem lá de
fora”. Muitos outros grupos de Banguê e Samba de Cacete resistem ao tempo, muito por conta do esforço de seus membros e mestres de cultura, que acabam por bancar até financeiramente essa arte por uma única razão: amor a cultura cametauara.
Para
que outras mortes culturais não ocorram, nesse nosso rico celeiro de arte da
terra, faz-se necessário o apoio e a intervenção incondicional dos governos e
dos amantes da arte popular.
Os
mestres saem de cena, mas o legado deixado por eles continua brilhando nos
palcos da vida, na melodia dos grupos que ainda resistem ao amarelado do tempo. É só olhar na corredeira da história para lembrar e na esquina das ruas e dos rios para apreciar!
*Arodinei Gaia de Sousa, historiador e escritor cametaense. Agosto de 2021.
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